MÃO MORTA
Ao longo das últimas quase três décadas os Mão Morta têm tido sempre uma palavra a dizer no rumo do rock em Portugal. Com uma discografia que soma mais de doze discos de originais (aos quais se juntam registos ao vivo ou compilações), a banda de Braga dividiu opiniões, criou alguns hinos geracionais e conta com um percurso onde não faltam episódios curiosos. Um deles decorreu mesmo antes da sua formação, quando Harry Crosby, músico dos nova-iorquinos Swans, considerou que Joaquim Pinto "tinha cara de baixista". Esta opinião, partilhada em Berlim algures em 1984, após um concerto do grupo americano, serviu como incentivo para que Pinto se sentisse encorajado a aprender a tocar baixo e a integrar uma banda. E assim nasciam os Mão Morta.
O Orfeão da Foz, no Porto, testemunhou no ano seguinte o primeiro de muitos concertos que funcionaram como rastilho para o culto. Ainda nos palcos, o grupo passou por vários concursos – como o do mítico Rock Rendez-Vous, em Lisboa, em 1986, onde conquistou o Prémio de Originalidade – e chegou a novos públicos com as primeiras partes de concertos dos Xutos & Pontapés, em 1987, que então eram mais populares do que nunca. Outra primeira parte, de um concerto dos norte-americanos Gun Club em Lisboa, foi também marcante mas por razões diferentes: a noite terminou com um Cinema Império devastado, uma vez que o público refletiu a energia da banda e acabou por gerar desacatos com os seguranças.
"Mão Morta", o álbum de estreia, foi editado em 1988 e não desiludiu a maioria dos que seguiram o grupo até então. O aplauso da imprensa musical, a adesão aos concertos que se sucederam e até os elogios de Nick Cave (para quem os Mão Morta fizeram, nesse ano, as primeiras partes em Lisboa e no Porto) contribuíram para que o arranque da discografia do grupo fosse feito da melhor forma. Era um disco completamente diferente do que então se fazia em Portugal.
Ao longo desse período inicial decorreu também um dos episódios mais memoráveis da história do grupo: a passagem pelo Rock Rendez-Vous, em 1989, foi da euforia ao pânico quando Adolfo Luxúria Canibal auto-infligiu vários cortes na perna enquanto cantava "Bófia". E o sangue da letra da canção tornou-se tão real que foi necessário um garrote para o estancar – situação que despertou desmaios no público e a ida do vocalista para as urgências no fim do concerto.
Em apenas quatro anos, os Mão Morta editaram mais três álbuns, do "disco de ressaca" "Corações Felpudos" (1990) ao "de urgência", "O.D. Rainha do Rock and Crawl" (1991). Mas o melhor, na opinião de muitos fãs, guardou-se para o fim destes quatro anos: "Mutantes S.21" (1992). Viagem aos recantos mais sinuosos de nove cidades – de Lisboa a Paris, passando por Istambul ou Amesterdão –, deixou um clássico na memória coletiva (o inevitável "Budapeste") e é um dos álbuns mais consensuais da banda, tendo originado concertos lendários como o do Theatro Circo, em Braga, destruído por uma multidão em transe com a música do grupo.
Menos celebrado do que o antecessor, "Vénus em Chamas" (1994), a estreia por uma multinacional – BMG Ariola –, mostrava os novos caminhos experimentais que se perfilavam no horizonte da banda. Ao ponto que depois da revisão da matéria dada, "Mão Morta Revisitada" (1996), que encerrou a breve passagem pela BMG, sucederia o mais desafiante "Müller no Hotel Hessischer Hof" (1997), álbum onde os Mão Morta musicaram poemas do dramaturgo alemão Heiner Müller (a partir de um convite do encenador Jorge Silva Melo). Mais do que um disco, o resultado foi um espetáculo multimédia estreado num Centro Cultural de Belém repleto.
Também muito concorrido, o concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, encerrou a apresentação de "Há Já Muito Tempo que Nesta Latrina o Ar se Tornou Irrespirável" (1998) com um apuro cénico ainda mais forte – onde o vídeo foi ferramenta essencial para o grupo desenvolver as reflexões sobre os media presentes nesse disco, baseadas nas teorias situacionistas de Guy Debord. Já na digressão de "Carícias Malícias", os espetáculos mostraram graus de ambição mais moderados e apostaram essencialmente em pequenos locais, com um intimismo que marcou vários espaços do país onde um concerto de rock seria improvável.
Com "Primavera de Destroços" (2001) e com "Nus" (2004) os Mão Morta regressaram a concertos mais elaborados e teatrais, vertente mantida e aperfeiçoada em "Maldoror" (2007), álbum apresentado na cidade-natal do grupo, num Theatro Circo renovado que encheu repetidamente com um público deleitado pelo espetáculo cénico ancorado nos "Cantos de Maldoror" do Conde de Lautréamont.
Além dos Mão Morta, Adolfo Luxúria Canibal trabalhou também, neste período, em projetos paralelos, caso dos Mécanosphère (de origem francesa) ou Estilhaços, com outro elemento dos Mão Morta, o teclista e produtor António Rafael, que por sua vez compôs também para peças de teatro. Rafael fundou ainda o projeto eletrónico Jazz Iguanas, com Miguel Pedro, e este último integra os Mundo Cão, juntamente com Vasco Vaz, banda mais centrada no rock.
E foi também ao rock mais primário e cru que os Mão Morta regressaram com "Pesadelo em Peluche" (2010), novamente para uma multinacional – Universal – e último álbum em data. E este regresso motivou outro, já que a banda voltou ao Coliseu de Lisboa para apresentar o disco – onde propôs, mais uma vez, uma reviravolta cénica ao vivo. E depois dos grandes festivais, como o Rock In Rio – Lisboa, o Alive ou o Paredes de Coura – onde são aliás presença recorrente – e de atuações por Espanha, França, Itália e agora Brasil, aguarda-se com expectativa um prometido novo disco para o final do ano.
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